Heterodoxia e ortodoxia no pensamento econômico em saúde
fundamentos e polêmicas do debate
DOI:
https://doi.org/10.14295/jmphc.v12.1077Palavras-chave:
Economia da Saúde, Pensamento, ComunismoResumo
O modo em que homens e mulheres se organizam para produzir e distribuir a riqueza social determina o que é a salubridade e a enfermidade nos corpos. Esta forma de pensar ‘o social’ na saúde se traduz em seus desdobramentos políticos e econômicos, podendo-se se dizer que há um ‘pensamento econômico em saúde’ que se inspirou da tradição marxista para compreensão econômica dos fenômenos sanitários. Assim, para compreendermos o pensamento econômico em saúde nesta vertente, faz-se necessário uma primeira aproximação com o pensamento econômico em geral para, posteriormente, adentrarmos a saúde. Segundo Guerrero, podemos dividir o pensamento econômico em duas grandes escolas ou matrizes, aquela de conteúdo heterodoxo e outra de conteúdo ortodoxo. Entretanto, a tarefa de demarcar com precisão a divisão entre essas duas escolas não é trivial, não podendo ser considerada como apenas um mero exercício taxonômico mas muito pelo contrário, trata-se de possibilitar a compreensão mais aguçada de seus paradigmas e seus decorrentes limites e avanços analíticos que implicam nas escolhas políticas do pensar o ‘econômico’. De maneira geral, após os clássicos da Economia Política surgiram três grandes tendências do pensamento econômico. A primeira se refere a uma análise classista dos clássicos em que a dinâmica capitalista prejudica ou favorece certas classes sociais. Nesta tendência são notoriamente destacados os Socialistas Ricardianos e o Socialismo Reformista. A segunda, contida primordialmente na crítica à Economia Política desenvolvida por Marx, apresentava a superação dialética do capitalismo pelo socialismo científico, e posteriormente nos seus desenvolvedores das mais diversos matizes e subdivisões internas ao Marxismo. Por fim, a terceira, dividida em duas subtendências, é representada pelos economistas que ancoram suas análises no postulado que o sistema capitalista é o ‘melhor possível’ devido aos imperativos das leis de mercado ou que seria o ‘menos pior’ sistema de organização da vida econômica, pela possibilidade de domesticação dos seus ‘selvagens’ impulsos violentos por meio do controle público e institucional, ou seja, respectivamente os Neoclássicos e os Keynesianos. Sendo as duas primeiras tendências os economistas de pensamento heterodoxo e a terceira, subdividida em duas, os ortodoxos. Entretanto, a interpretação desenvolvida por Guerrero das principais escolas do pensamento econômico, e suas respectivas subdivisões em heterodoxia e ortodoxia, está longe de ser um consenso entre os pesquisadores no campo do pensamento econômico, até mesmo entre autores filiados às mesmas escolas teórico-políticas. Sobretudo na demarcação entre o que seria essa linha divisória fundamental entre estas duas grandes subdivisões e nos possíveis desdobramentos de interpretação e atuação na esfera política. De todo modo, essa polêmica teórica não se encerra no interior da história do pensamento econômico, pelo contrário, se extravasa para os demais campos que se utilizam dessa tradição crítica para compreender e desenvolver temas e categorias contemporâneas. Neste movimento de expansão da polêmica para outros campos, podemos destacar o pensamento econômico em saúde, particularmente no Brasil, devido aos clássicos embates entres os sanitaristas no bojo do Movimento da Reforma Sanitária (MRS) e, na atual agudização da temática durante a crise sanitária desencadeada pela pandemia de Covid-19, que intensificou a discussão entre saúde e/ou economia. Dessa maneira, o presente estudo tem como objetivo analisar os fundamentos e polêmicas entorno do debate da categorização da heterodoxia e ortodoxia, com ênfase para especificidades do pensamento econômico em saúde no Brasil. Com este intuito, foi desenvolvido um percurso metodológico subdividido em duas partes: a primeira parte é uma análise das principais polêmicas e subdivisões das escolas de pensamento econômico, baseada sobretudo em Guerrero e Malta; a segunda parte se trata da interpretação destes embates no seio do pensamento econômico em saúde, por meio do resgaste de autores chaves do campo como Breilh, Possas, Singer, Santos e Cordeiro. Para Guerrero, a descrição história da conformação das escolas, por mais importante que seja, não é suficiente para definir com exatidão a ‘linha divisória’ entre a heterodoxia e ortodoxia no seio do pensamento econômico, para esta definição é necessário elencar suas análises e paradigmas. Dentre os paradigmas dos economistas heterodoxos é marcante a perspectiva da análise histórica, da conformação de classe e, sobretudo, da perspectiva socialista (seja esta científica ou não) e a teoria valor-trabalho como pedra angular do arcabouço categorial-analítico. Por sua vez, os ortodoxos tecem suas análises a partir da compreensão a-histórica da esfera econômica, o que acarreta na naturalização da sociabilidade capitalista, e, no caso dos neoclássicos, se ancoram na teoria valor-utilidade; já os keynesianos abandonam a perspectiva da necessidade de uma teoria do valor para explicar a dinâmica dos preços das mercadorias. Para Malta, esta linha divisória não está tão clara, sobretudo no caso específico da escola de pensamento keynesiano. Apesar de adotar alguns expedientes da ortodoxia (recusa da teoria do valor-trabalho e na naturalização das relações sociais) é uma subtendência que se coloca em oposição aos pressupostos neoclássicos e desenvolve uma macroeconomia particular, e que na periferia do capitalismo apresenta uma forte perspectiva desenvolvimentista. Nas especificidades do pensamento econômico em saúde, essas duas escolas (marxismo e keynesianismo) são as principais e que apresentam o debate mais avançado. Porém, situam suas análises em categorias e metodologias diferentes. A escola marxista se concentra na análise da crítica da economia neoclássica dos modelos médico-epidemiológicos e das condições materiais de vida e trabalho. Por sua vez, os keynesianos na atuação do Estado na economia e na conformação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), sobretudo no âmbito do desenvolvimento nacional e na amenização das desigualdades sociais. Por fim, compreendemos que a polêmica ocorre sobretudo na categorização da escola Keynesiana e sua autonomia relativa à uma visão mais ou menos crítica das relações sociais no capitalismo. Porém, nas especificidades do pensamento econômico em saúde, elegemos a análise e categorização de Guerrero como a mais adequada para a atual realidade do capitalismo em crise econômica de longa duração que proporcionou a crise sanitária pandêmica, uma vez que nesta subdivisão é ressaltada a radicalidade da crítica marxista (heterodoxia) e a debilidade das respostas de cunho neoclássico e desenvolvimentista (ortodoxia) que arrastam as soluções de superação da crise sanitária para a conformação de um “novo normal”.
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